terça-feira, 10 de agosto de 2010

A criação publicitária nos tempos da prancheta

Introdução
Comecei a trabalhar em propaganda no ano de 1957, o que representa meio século de atividades exclusivamente nessa área. Muitos até podem-me chamar de dinossauro, de pré-histórico, de Flinstone ou outra expressão parecida. Só posso sentir orgulho. Nestes mais de cinqüenta anos trilhei um longo caminho para realizar meu sonho profissional: alcancei cargos de ponta em várias agências, empresas e instituições e fui titular durante 41 anos da minha própria agência em São Paulo, a Julio E. Bahr Propaganda, que se manteve atuante mesmo durante os altos e baixos da economia brasileira. Mais baixos do que altos, convenhamos.
Conheci muita gente interessante e, principalmente, inteligente.
Modestamente, meu trabalho ajudou a alavancar empresas, marcas, produtos e negócios. Na história da minha agência incluem-se mais de 120 empresas atendidas, grande parte delas por vinte, trinta e até mais anos, continuamente. Empresas de pequeno e grande porte. Nacionais e multinacionais.
Foi por meio da propaganda que travei grandes amizades. E foram muitos os amigos que me incentivaram a escrever estas lembranças ligadas à atividade publicitária, para que não caiam no esquecimento das próximas gerações.
Lembranças que começam com

Rameta, prova de escova, Minerva e outras raridades


O velho tipógrafo ajeitou a pala sem boné, empurrou a última caixa tipográfica de volta no cavalete, guardou o componedor e amarrou a rameta com o barbante.Era mais uma página de composição de textos pronta, uma mistura de linhas fundidas em linotipo e tipos da caixa.
Com a prática de tantos e tantos anos na profissão, preparou-se para bater a primeira prova. Com um rolo de mão, o tipógrafo passou cuidadosamente tinta preta sobre a composição na rameta, colocou sobre ela uma folha de papel jornal e golpeou-a com uma escova. As primeiras “provas de escova” estavam prontas para serem enviadas à agência de propaganda, onde seriam revisadas.
Para imprimir posteriormente as composições definitivas, o trabalho era ainda maior: o impressor montava a rameta no quadro de rama, preenchia os espaços vazios com material branco (lingotes de chumbo dos mais variados tamanhos), apertava os cunhos com a chave e colocava a rama na máquina de impressão Minerva . Um calço aqui, outro acolá e assim eram impressas algumas folhas no chamado papel glacê.
Na agência, o paste-up man passava talco no glacê para evitar que as composições borrassem e com um estilete cortava os vários blocos de texto para colá-los na arte-final, um desenho traçado com tira-linhas, seguindo fielmente a configuração do layout.
Não, esse relato não pertence à era pré-histórica. Era exatamente esse o processo, lá pelos anos 1960, usado pelas componedoras de textos que supriam as agências de propaganda, antes do advento das fotoletras, fotocomposições e da computação gráfica. Primitivo aos olhos de hoje? Talvez. Mas extremamente envolvente e romântico para aqueles que participaram daqueles tempos pré-computadorizados. E com um delicioso cheiro de tinta de impressão.
Quem se interessar, talvez encontre ainda em algum sebo um velho "Dicionário de Artes Gráficas" escrito por Frederico Porta, com mais de 400 páginas, editado pela Editora Globo na década de 1950. Lá você vai encontrar termos provavelmente jamais ouvidos, como biseladora, brunidor, calcossiderografia, chifra, corônis, duerno, faiar, fólio verso, helioplastia, isografia, lotinotipia, martelo justificador, monotipopolicromia, ocogravura, papirotipo, policopista, resvaladouro, rolo filigranador, rowotype, someiros, timpanilho, vinheteiro, além de breve biografia de João Gutemberg, nascido por volta de 1400, considerado o pai da tipografia “moderna”.
Pois naqueles tempos, para se trabalhar em criação publicitária, todos nós, layoutmen, produtores gráficos, paste-up men, fotógrafos e até o pessoal do tráfego, éramos obrigados a conhecer ao menos os fundamentos das artes gráficas - assim como hoje precisamos conhecer, no mínimo, os princípios da computação gráfica. Se você trabalha com criação publicitária e utiliza programas gráficos no seu computador, não deixe de conhecer a fantástica e fascinante história das artes gráficas.

Matrizes de pedras. Litografia. Você já ouviu falar?

No final da década de 1950, a Catalox, agência de propaganda em que eu trabalhava como assistente de arte em São Paulo, acertou alguns trabalhos gráficos com a empresa Weiss & Cia., uma gráfica muito, muito antiga, remanescente da década de 1920. Instalada na Rua Apeninos, na Aclimação, era dirigida por um imigrante austríaco, uma figura bastante imponente e autoritária.
Meu acesso à gráfica deu-se pelas mãos do seu neto, Raul C. Magen, até hoje um grande amigo meu. A Weiss & Cia. imprimia livros, embalagens e trabalhos comerciais.
Lembro-me de uma das suas antigas máquinas de impressão offset, talvez a maior e mais antiga que já tenha visto até hoje. Para acompanhar o serviço, o impressor subia por uma escada de ferro e caminhava em uma espécie de andaime, também de ferro, ambos montados na própria máquina. Quando lá subi, minha sensação era a de estar no tombadilho de um navio. Bem diferente dos modernos equipamentos de hoje.
E foi naquela gráfica que descobri um enorme salão, ladeado por fortes estantes de madeira, onde eram guardadas, bem ordenadas, pedras e mais pedras de impressão litográfica. A litografia, utilizada até os anos 1930, foi precursora dos clichês de zinco e utilizava pedras calcárias que recebiam a gravação invertida das imagens, um trabalho feito por especialistas. Os desenhos eram passados de um papel de seda, cor por cor, para cada pedra separadamente e a gravação feita à mão. As pedras eram as matrizes do processo de impressão. Trabalho de artistas. U
m dia, ganhei do meu amigo Raul um rolo de papel, já meio amarelado, que tinha sido encontrado no forro da gráfica. Era um belíssimo mapa da Revolução de 32, com o título “Esta he a carta verdadeira da revolução q:houve no Estado de São Paulo no ano de MCMXXXII”, assinado JWR (João Walsh Rodrigues, um dos maiores gravadores do Brasil e o primeiro ilustrador das histórias de Monteiro Lobato). Fora impresso em seis cores com as pedras do velho sistema litográfico e mostrava as posições das tropas paulistas e do Brasil no meio do conflito de 1932, cidade por cidade, em todo o Estado de São Paulo. O mapa, encomendado pelos constitucionalistas, tachados na época de separatistas era, portanto, clandestino. A história conta que, terminada a revolução, por causa de uma denúncia, soldados getulistas foram revistar a gráfica e confiscaram os mapas, obrigando também o antigo proprietário a quebrar as pedras na sua frente, ou seja, as matrizes da impressão original.
A Weiss & Cia. foi vendida em 1972 para a Gráfica Hamburgo. Presumo que apenas dois mapas, encontrados no forro da gráfica, ficaram preservados para a posteridade. Um deles foi doado oficialmente pela Gráfica Hamburgo à Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo – e o outro... está bonitinho, emoldurado, preservado, exposto na minha casa.
Nunca mais tive notícias do enorme acervo das máquinas de impressão, nem das pedras litográficas, peças de museu que hoje representariam um verdadeiro tesouro.


Estéreo de chumbo. Estereoplástico. O que é isso?

No começo da década de 1960, havia quatro principais clicherias em São Paulo que atendiam às agências de propaganda: Lastri, Brasil, Planalto e Fortuna.
Todas se intitulavam “Clicheria e Estereotipia”. Não demorou muito para que eu descobrisse o que significava estereotipia.
Nas agências, havia uma espécie de afinidade entre os contatos (hoje chamado de pessoal de atendimento) e os boys. Dizia-se que ambos tinham os braços direitos mais compridos que os esquerdos. Os contatos, por carregarem, nas visitas aos clientes, aqueles layouts montados em pranchas enormes, sempre de forma a causar a melhor impressão e um forte impacto visual. Os layoutmen não economizavam papel, cartão e tudo o mais que servisse para valorizar a apresentação do trabalho. Restava aos contatos achar a melhor forma de transportar os trabalhos – e ai de quem tivesse braços curtos...
Já os boys passavam por outro sofrimento: os estéreos eram nada mais, nada menos, do que grossas cópias em chumbo, fundidas a partir de clichês. Quando os anúncios eram publicados simultaneamente em mais de um jornal, lá se iam os boys carregando os estéreos de chumbo para o Estadão, Folha, Gazeta, Última Hora, Diário da Manhã, etc. Isso quando não eram campanhas de âmbito nacional, endereçadas também ao Globo e Jornal do Brasil no Rio, ao Estado de Minas, e a outros estados.
Para diminuir o peso, os estéreos passavam, após a fundição, por um processo de “escavação”, quando era retirado o chumbo das partes que correspondiam ao fundo branco do anúncio. Quanto mais fundo branco, mais escavações e furos – e mais leve os estéreos se tornavam. Quanto mais ilustrações e textos, tanto mais pesados. Dá para imaginar o peso quando os anúncios eram de página inteira...
Um dia, algum gênio, certamente condoído pelos superesforços despendidos pelos boys, criou o chamado estereoplástico – os mesmos estéreos agora fundidos em resistente material plástico. O peso reduziu-se a menos de um décimo. Os boys passaram a rir à-toa pelos cantos das agências.
Algum tempo depois, as clicherias se modernizaram e iniciaram, elas mesmas, um sistema de entrega dos materiais aos jornais. Assim que a prova fosse aprovada na agência, os estéreoplásticos eram fundidos e encaminhados diretamente aos jornais, sempre dentro dos horários.
Os mesmos boys que andavam assobiando pelas ruas, começaram a ser demitidos.
Nos anos 1960, estava sendo lançada a semente do “atendimento global” – uma expressão que só veio ser cunhada muitos anos depois.
Qualidade de atendimento e novas tecnologias surgindo. As clicherias sempre se atualizando.

Ah, a velha typographia!

Não que eu seja do tempo do ph.
Mas são cerca de cinco décadas convivendo com artes gráficas, passando trabalhos depré-impressão e impressão para as velhas tipografias, clicherias, estereotipias, linotipadoras e componedoras, que se transformaram nos atuais birôs, fotolitografias e gráficas.
Caiu-me nas mãos um velho catálogo de tipos, vale a pena ler:
Esta geração que aí está, dominando com extraordinária perícia computadores, hardwares e softwares, com sofisticados programas gráficos, não tem a menor idéia dos quase rudimentos que as artes gráficas representavam há quatro, três e até duas décadas.
Não encontrei no catálogo nenhum tipo com corpo maior do que 72 pontos.
Lembro-me que para corpos maiores, existiam tipos de madeira, pois os fundidos em metal não agüentavam a pressão das máquinas de impressão ou de provas.
Usávamos provas em papel glacê: a velha clicheria Lastri (São Paulo) entregava às agências um belíssimo catálogo de tipos, com as famílias bem ordenadas, tudo dentro de uma caixa de madeira. O “catálogo” ficava na mesa do produtor e do layoutman e era por lá que pedíamos as composições para colar nas artes finais.
Quando nós, nas agências de propaganda, criávamos anúncios, havia sempre o dilema de como aplicar o título da chamada. Revistas americanas serviam de inspiração. Caso não encontrássemos “similares” no catálogo da Lastri, nós mesmos desenhávamos os títulos, após anos de aprendizado com a ajuda do catálogo da Speedball.
Se nossos esforços para desenhar títulos resultassem em fracasso, então era hora de chamar o Mineirinho – um desenhista letrista que atendia a praticamente todas as agências de São Paulo. Nunca vi nenhuma devolução dos seus desenhos, tão perfeitos e caprichados que eram seus trabalhos.
Mineirinho cobrava por letra e mandava a sua fatura no fim de cada mês. Imagino que tenha ficado riquíssimo. Nunca mais soube dele, principalmente quando chegaram ao Brasil as fotoletras – uma maravilha para os diretores de arte, pois podíamos pedir tipos de letras até então jamais vistos e – o melhor – ampliados para qualquer tamanho.
Depois das fotoletras, outras novas técnicas surgiram rapidamente.


Adeus, bendays. Chegou a fotomecânica

Um dia, creio que no começo dos anos setenta, apareceu na nossa agência um catálogo especial da Lastri, que como muitos se lembram, foi uma das principais clicherias/estereotipias de São Paulo, atendendo a praticamente todas as agências de propaganda da cidade.
Pois bem, o catálogo, muito bem encadernado, trazia na capa uma ilustração elaborada a partir de uma das esculturas do Aleijadinho. E nas páginas internas... que sensação! Finalmente, surgia uma opção gráfica para darmos um tratamento diferenciado às fotos que utilizávamos.
Chegava a fotomecânica, sistema para aplicar efeitos especiais de jato de areia, linhas onduladas, alto-contraste, círculos concêntricos, tom-linha, linhas retas e outros efeitos, que vieram substituir os velhos desenhos de scratch-board (quem se lembra?). O scratch-board, até então, era executado em um cartão especial, o cartão gessado, sobre o qual o ilustrador trabalhava invertidamente: primeiro pintava um fundo preto com tinta nanquim e em seguida ia raspando com um estilete, chegando a resultados belíssimos. Estas ilustrações eram, principalmente, de máquinas, rádios, aparelhos de TV, geladeiras e automóveis.
Com a chegada da fotomecânica, não precisávamos mais dos especialistas em scratch-board: O trabalho ficava por conta da Lastri.
Os efeitos especiais se destinavam principalmente à aplicação em fotos para anúncios de jornal. A maioria dos jornais era ainda impressa com clichês. A impressão exigia retícula 25, isto é, pontos muito largos, para que as fotos não borrassem. Na época, usávamos de alguns truques, preferindo desenhos às fotos, com aplicações de toda uma coleção de bendays, os únicos efeitos especiais da época.
A década de setenta representou uma revolução nas artes gráficas aplicadas à propaganda. Junto com a fotomecânica, começavam a chegar equipamentos de fotocomposição, substituindo as provas tipográficas tiradas em papel glacê; os jornais foram mudando o sistema de impressão, eliminando os velhos clichês e estéreos, o que possibilitava o uso de retículas mais fechadas, com enorme melhoria das imagens impressas; e as clicherias foram sendo substituídas pelas fotolitografias, principalmente por causa da impressão offset, já adotada pela maioria das gráficas.
Da litografia para o offset, que enorme salto tecnológico!
Do layout desenhado para criações executadas no computador, que diferença!

O progresso

Ao descrever a criação publicitária nos tempos da prancheta, minha intenção foi preservar para as próximas gerações um pouco da história de como trabalhávamos antes do advento do computador. Mais ou menos como as histórias das caravelas do Cabral comparadas aos modernos transatlânticos de hoje. Ou, de como um dia o homem descobriu o fogo esfregando duas pedras.
Dos capítulos anteriores o leitor certamente terá percebido que muitas das especialidades descritas nem existem mais.
Nas artes gráficas, os novos processos de impressão, com equipamentos cada vez mais modernos e automatizados, levaram de roldão os tipógrafos, tiradores de provas, especialistas em clichês e estéreos, e a maior parte do pessoal de fotolito.
Já faz também um longo tempo desde que foram eliminadas as palavras linotipo, monotipo, clichês, caixas de tipos e impressão tipográfica. Grande parte das velhas máquinas tipográficas está encostada em um canto, foi enviada para pequenas tipografias do interior ou ainda, vendida como sucata.
Nas agências de propaganda também se extinguiram os empregos dos paste-ups, dos especialistas em retoque americano, de scratch-board e dos letristas, além das pranchetas, pincéis, bastões de pastel, lápis carvão, tira-linhas, esquadros, prisma e outros objetos. A palavra layoutman ficou meio perdida no tempo e no espaço. As datilógrafas perderam espaço para os digitadores.
Uma nova terminologia veio substituir ou se juntar aos cargos e funções na atividade publicitária, como web design, graphic design, especialistas em photoshop, vídeo-arte e animação gráfica, publicações digitais e tantas outras.Novos birôs de pré-impressão e gráficas de impressão digital e vieram se somar ao mercado.
A grande diferença pré e pós-computador era a presença indispensável do layoutman, artista com muitos anos de prática que desenhava as criações no papel, resultado do trabalho da dupla diretor de arte e redator. Hoje, o layoutman foi substituído pelos operadores de programas gráficos e de photoshop do computador.
Parte dos antigos layoutmen, hoje na faixa dos sessenta anos, chamados pelos mais jovens de dinossauros, conseguiu trocar a prancheta pelo computador e ainda é capaz de dar um banho de criatividade na rapaziada pós-computador.
Outros, simplesmente se afastaram da atividade publicitária, dedicando-se à pintura, à fotografia e a outras artes visuais.
Como se vê, o progresso traz soluções, mas deixa muitas vítimas pelo caminho.

Um comentário:

Laercio Oliveira disse...

Parabéns pelo artigo.
Trabalhei com diversos recursos mencionados, desde 1979, quando ainda estudante, comecei a fazer trabalhos profissionais de artes gráficas, elaborando desenhos para catálogos técnicos de empresas. Ainda mantenho canetas nanquim, compassos, tecnígrafo e outros equipamentos, bem como, não dispenso o filme 120 para reproduções de alta qualidade,técnicas que sobrevivem ao lado do CAD e da imagem digital.